*Por Andrezão Simões
Acolher, escutar e acessar o outro. O encontro terapêutico se move nessa direção entre duas almas. Em tempos de pandemia este encontro naturalizou-se on-line para muitos. E assim fomos lendo pessoas em novos settings, em novos cenários de presenças. Afinal ali estamos ou não presentes? O próprio conceito de presença está em movimento. Presença física e presença virtual. A dicotomia do momento entre materialidade e representação de si mesmo, seja em avatares ou em quase hologramas em análise. Seja como for há substâncias pessoais em troca e tratamento.
A Clínica Psiquê, na qual me formei, é um centro de estudos, atendimento, formação e aperfeiçoamento do analista a partir das descobertas, ideias e conceitos de Jung. Fomos preparados para mais do que utilizarmos um método, teoria ou abordagem, entendermos a complexidade das expressões do encontro analítico entre pessoas. O que nos move é a vida em suas mais diversas possibilidades e impossibilidades.
Para além da mutação desta era, a COVID19 fez o mundo parar para sentir, alguns mais, alguns menos. Confinou vidas. Levou vidas. Afrontou teorias. Exigiu transformações. Sofrimentos psíquicos. Separações e uniões. Revolveu feridas de convívio. Racismo, machismo, sexismo, preconceitos atávicos. Interpelou institucionalidades. Promoveu a aceleração de partículas do ensino digital e da partilha de informações. Questionou afirmações absolutistas. Emparedou tabus. Reavivou a condição humana e desumana entre cooperação e domínio. Colocou no mesmo balaio sentimentos, percepções e tecnologia. Isolamento e desolamento social. Expôs política e políticos. A invisibilidade da vida e a visibilidade da morte. E toda a sorte de convites e ofertas para uma revolução se estabelecer nas mentes, que se sentarão defronte uma da outra, nos consultórios físicos ou digitais.
Que novo analista emergirá de tanto? O que evocará da Psicologia Analítica? O que deve ser atualizado em sua atuação frente aos seres pós pandemia? A escuta estará preparada para ouvir o que ainda não se sabe dizer? O conhecimento estruturado em vivências europeias contemplará a universalidade indígena e afro-brasileira? Que transferência e contra transferência será capaz de sustentar diante das questões Trans, por exemplo? Será este novo analista capaz de interpretar as dores das ruas e das “infovias”? E de que maneira os complexos culturais o atravessarão? Saberá o novo terapeuta, diante da possibilidade real, atender on-line clientes das Américas, Europa, Ásia e África sem sair de casa, mas ir além dos seus muros?
Que novos saberes deverá se expor? As grades curriculares e as sociedades de formação permanecerão excessivamente tradicionais ou se abrirão ao novo? Como formar novos terapeutas, engajados em seu tempo? Estamos em um oceano de indagações, incertezas e impermanências, ainda bem.
Durante a pandemia um psicanalista famoso partiu. Contardo Calligaris, que escreveu um livro fundamental para quem, como eu, iniciava os atendimentos há mais de uma década. CARTAS PARA UM JOVEM TERAPEUTA. Contardo caminhou com a psicanálise para além do consultório. Escreveu livros, colunas em jornais famosos, deu entrevistas, disseminou conhecimento e sabedoria à frente do seu tempo. Ler Contardo já me deixou imerso em ser novo, mesmo já maduro. Em aceitar novidades e antiguidades abraçadas em existência e diálogo.
Em seu último diálogo com o filho respondeu que esperava “estar à altura da morte”. Talvez, mais uma vez, aprendamos com ele, pois o sentimento é de transformação profunda e de morte de velhos padrões para o exercício profissional deste novo terapeuta, jovem ou experiente. Que todos estejamos à altura, Contardo.