*Por Elisa Maria Araujo
A construção da teoria analítica foi produto do interesse de Carl Gustav Jung por diversas áreas e temáticas, somado à sua atuação prática como médico psiquiatra e à sua própria análise pessoal. Curioso e muito estudioso, Jung se propôs a buscar na Antropologia, Filosofia, Alquimia, Religião, Artes, dentre outras produções que o ajudassem a entender melhor a psique humana, e o próprio desenvolvimento de sua personalidade foi material imprescindível para esse conhecimento.
O início da sua própria teoria, dissociada da psicanálise de Sigmund Freud, ocorre quando Jung escreve “Símbolos da transformação”. Desde então, passa a defender sua ideia de que a psique é composta por uma consciência, que representa uma pequena parte, controlada por um núcleo central denominado ego, e possui o inconsciente, predominante na psique, formado por um aspecto pessoal e também por um coletivo. Para Jung (2012b, v. XVIII/2. p. 58-59), o conceito de inconsciente, “precisava ser ampliado, pois o inconsciente não era apenas um produto da repressão, mas o solo materno e criador da consciência. […] O inconsciente não devia ser explicado apenas em termos personalistas, como simples fenômeno pessoal, mas em parte como fenômeno coletivo”.
O inconsciente pessoal representa a definição de inconsciente que Freud brilhantemente descobriu e conceituou, como parte da psique composta por conteúdos individuais vividos, que foram reprimidos ou esquecidos. Jung deu nome de complexos, “a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem […] tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia” (JUNG, 1928/2013a, v. VIII/2, p. 43). De acordo com sua visão, ninguém nasce tabula rasa, e o inconsciente é mais do que aquilo que não se lembra ou não se suporta lidar, e acrescenta à definição o inconsciente coletivo:
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos (JUNG, 1936/2014d, v. IX/1 p. 51)
A descoberta dos arquétipos foi fruto de grandes associações entre os mitos, estudos antropológicos em tribos, e tratamento de pacientes esquizofrênicos. “A imagem primordial que também chamei de ‘arquétipo’ é sempre coletiva, ou seja, é, no mínimo, comum a todos os povos e tempos. Provavelmente são comuns também a todas as raças e épocas os principais motivos mitológicos” (JUNG, 1921/2013b, v. VI. p. 459). Não é possível alcançar os arquétipos, apenas através de suas manifestações, como os mitos e sonhos, ou de suas personificações, os complexos. Existem tantos arquétipos quantas vivências possíveis, já que retrata uma experiência coletiva significativa, e os complexos serão a forma que cada um os vivencia (JUNG, 1936/2014d, v. IX/1).
Dei o nome de arquétipos a esses padrões coletivos, valendo-me de uma expressão de Santo Agostinho. Arquétipo significa um ‘typos’ (impressão, marca-impressão), um agrupamento definido de caráter arcaico que, em forma e significado, encerra motivos mitológicos, os quais surgem em forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e nos folclores. Alguns desses motivos mais conhecidos são: a figura do herói, do redentor, do dragão (sempre relacionado com o herói, que deveria vencê-lo), da baleia ou do monstro que engole o herói. […] Desse nível derivam conteúdos de caráter mitológico ou impessoal, em outras palavras, os arquétipos que denominei inconsciente coletivo ou impessoal (JUNG, 2013c, v. XVIII/1 p. 52-53).
A visão de Jung é a de que a psique é mítica e simbólica. A valorização dos mitos, tanto para sua teoria, quanto no livro clínico surge dos estudos aprofundados de muitos mitos que o revelam como “[…] expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através da projeção – isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza” (JUNG, 1933/2014e, v. IX/1 p. 14). Os mitos manifestam como conteúdos os padrões psíquicos – os arquétipos, que são revividos através das experiências ritualísticas. Assim como os sonhos, são permeados de símbolos, que são a melhor expressão possível para aquilo que é desconhecido, repleto de significado pessoal (JUNG, 1921/2013b, v. VI). Sendo a ponte entre o inconsciente e a consciência, é o livro de buscar entendê-los sob a perspectiva individual que aproxima essas polaridades internas da psique e proporciona uma totalidade.
Os ritos, nesse contexto, são organizados por uma série de símbolos, que convidam os sujeitos a atualizarem os mitos, expressões dos arquétipos (JUNG, 2013c, v. XVIII/1). Exigem comprometimento em tempo e espaço para a atividade ritualística que conecta os envolvidos aos poderes do inconsciente coletivo, o que normalmente mobiliza energia que impulsiona transições e insights (CAMPBELL, 1990). Para os junguianos, a própria terapia analítica se configura como um ritual, a ser realizado semanalmente, com as regras acordadas entre paciente e terapeuta, seguindo o objetivo de conectar a consciência do primeiro às imagens e ideias do inconsciente.
Para descrever os efeitos que a experiência ritualística pode ofertar, Jung recorre ao termo numinoso, normalmente vinculado às experiências religiosas, ou do sagrado, caracterizando algo que não se consegue nominar, que transcende, despertando um estado de êxtase. Proporciona um efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário, em que a vivência se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, que proporciona uma vivência transformadora à consciência, que determina um novo estado, de difícil descrição e envolta de mistério (JUNG, 1939/2012a).
A dinâmica psíquica, segundo a Psicologia Analítica, não é composta apenas por libido sexual, conforme a teoria freudiana, mas a libido para Jung é sinônimo de energia psíquica, reúne todo apetite de vida, vontade. Essa energia psíquica obedece a um princípio de constância, alternando entre progressão e regressão, buscando compensar os diversos opostos em que a psique se constitui. Através de um sistema autorregulador, a psique pode fomentar a enantiodromia, forçando a tendência a viver o oposto, já que o desenvolvimento perpassa por estar “entre”, no caminho do meio, e não polarizado (SILVEIRA, 1981).
O desenvolvimento de personalidade, na perspectiva junguiana, é o processo de individuação, que acontece durante toda a jornada da vida. Ele define como:
A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. É uma necessidade natural; […]. A individualidade já é dada física e fisiologicamente e daí decorre sua manifestação psicológica correspondente (JUNG, 1921/2013b, v. VI. p. 467).
Esse processo significa um alargamento da esfera da consciência e da vida psicológica consciente, coincidindo com o desenvolvimento da consciência que sai de um estado primitivo de identidade (JUNG, 1921/2013b, v. VI). Esse estado pode ser chamado de “participação mística”, quando “o sujeito não consegue distinguir-se claramente do objeto, mas com ele está ligado por uma relação direta que poderíamos chamar de identidade parcial, […], se baseia numa unicidade apriorística de objeto e sujeito” (JUNG, 1921/2013b, v. VI. p. 475). Esse termo, quando relacionado às sociedades civilizadas, refere-se não a uma relação entre objeto/sujeito, mas sim entre dois sujeitos, muito comum na fase mãe/bebê, mas que pode vir a se repetir em outras relações, onde as transferências inconscientes assumem influência mágica sobre o outro. Ampliar a consciência, e fazê-la dialogar com o inconsciente, estreita o eixo ego-self, núcleos centrais da consciência e inconsciente, respectivamente, e possibilita a realização de uma individualidade que se descola da massificação. É dar-se conta de que se é mais do que a consciência sabe e controla, permitir a realização do si-mesmo, incluindo tanto os poderes quanto as limitações, num livro árduo e longo, que exige perceber as personas, integrar a sombra, dissolver os complexos, confrontar os arquétipos contra sexuais e permanecer o diálogo contínuo entre ego e o self; aspectos desenvolvidos a seguir (JUNG, 2012b, v. XVIII/2; 1921/2013b, v. VI.; 1936/2014d, v. IX/1; 1928/2015a, v. VII/2).
A fase “preliminar será o desvestimento das falsas roupagens da persona” (SILVEIRA, 1981 p. 81). A persona é um dos arquétipos centrais vividos por todos os sujeitos. Ao longo da vida, a consciência desenvolve a noção de eu, de quem se é, o que se gosta de fazer, no que é habilidoso, a percepção de suas qualidades e defeitos. Essa construção sobre si é necessária e adaptativa socialmente.
“A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e, por outro lado, a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo” (JUNG, 1928/2015b, v. VII/2. p. 82). O trabalho de perceber as personas construídas ao longo da vida é aumentar o autoconhecimento sobre si mesmo, descobrir quais foram as escolhas realizadas, e o quanto se alterna ou não entre as tantas personas que se é possível ter. Não é incomum as pessoas se cristalizarem em uma persona – a profissional, a de mãe ou filho – e elas passarem a se reconhecer apenas sob essa ótica, diminuindo toda a sua potencialidade.
O arquétipo da sombra convive com as pessoas durante toda a vida. A polaridade da luz é a sombra, que remete aos polos consciência-inconsciente, respectivamente. O desenvolvimento de consciência sobre si acarreta paralelamente o desenvolvimento de inconsciência. “A sombra coincide com o inconsciente ‘pessoal’ […]. A figura da sombra personifica tudo o que o sujeito não reconhece em si e sempre o importuna, direta ou indiretamente, como por exemplo traços inferiores de caráter e outras tendências incompatíveis” (JUNG, 1939/2014c, v. IX/1 p. 284). Sempre haverá aspectos ocultos na psique, e levando em conta que todo arquétipo tem como característica inerente a bipolaridade, na sombra convivem bons e maus conteúdos desconhecidos. Residem aí todas as potencialidades ainda não acessadas bem como o que há de mais sujo e temeroso sobre si, que normalmente, como mecanismo de defesa, é projetado em outras pessoas, ou situações.
Segundo Jung (1921/2013b, v. VI. p. 478), a projeção “significa transferir para um objeto um processo subjetivo. […] Pela projeção o sujeito se livra de conteúdos penosos e incompatíveis, mas também de valores positivos que, por qualquer motivo, como, por exemplo, a autossubestima, são inacessíveis a ele”. Quanto menor o diálogo ego-self, quanto maior a distância entre consciência e inconsciente, maior é a sombra, e como consequência, maiores as projeções. Estas acabam sendo grandes influenciadoras nas formações das relações, pois se projeta nos outros aspectos inconscientes de si, o que acarreta numa atração desmedida (JUNG, 1910/2013d, v. XVII). A integração da sombra possibilita o sujeito além de projetar, introjetar os conteúdos que são seus, contribuindo para seu autoconhecimento e ampliação da visão sobre si, tanto em aspectos positivos, quanto negativos.
À medida que o sujeito vai tendo experiências arquetípicas, de alta tonalidade afetiva na vida, vai originando seus complexos, que se caracterizam como núcleos de ideias ou imagens emocionalmente carregadas. Quanto mais inconscientes, mais autônomos, e agem à revelia, quando ativados seja por um comportamento, imagem ou ideia que o retome. Tanto que Jung afirmou que não são as pessoas que têm os complexos, mas os complexos que as têm. Isto porque eles determinam escolhas, comportamentos (JUNG, 1928/2013a, v. VIII/2). “Um passo dos mais importantes para o conhecimento de si próprio, bem como para o tratamento das neuroses, será trazer à consciência os complexos inconscientes” (SILVEIRA, 1981, p. 30). Ao dissolver os complexos, e entender a origem da tonalidade afetiva que o forma, eles não deixam de existir. Passam a ser menos aprisionadores, e é possível alcançar os potenciais criativos do arquétipo.
Outros dois arquétipos de suma importância a todos os sujeitos são os contra sexuais, a anima e o animus. Esse é um conceito tão complexo que foi ampliado pelo próprio Jung e, posteriormente, pelos pós-junguianos. Inicialmente, Jung define: “anima, sendo feminina, é a figura que compensa a consciência masculina. Na mulher, a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus” (1928/2015b, v. VII/2. p. 96). Posteriormente, essa noção foi revista, denominando inclusive arquétipo andrógeno, desconsiderando gênero e sexualidade. Tanto a anima quanto o animus estão presentes nos homens e mulheres, designando a qualidade elementar feminina inconsciente e a qualidade elementar masculina inconsciente, respectivamente. Por isso, refere-se a uma base essencial comum a todos para a construção da estrutura psíquica (HILLMAN, 1973/1974 apud SANFORD, 1987).
Conforme explicado acima, a grande potencialidade para o desenvolvimento de personalidade é tornar consciente o inconsciente, aproximando o eixo ego-self. Do trabalho de unir conteúdos conscientes e inconscientes emergem novas situações ou estados de consciência. Essa união dos opostos foi designada por Jung de “função transcendente”, e é essencial para a condução da personalidade em direção à totalidade (JUNG, 1939/2014c, v. IX/1), porque possibilita organicamente a passagem de uma atitude para outra, justamente por ser transcendente (JUNG, 1928/2013a. v. VIII/2). “Tornar-se-á um conteúdo novo que dominará toda a atitude, acabará com a divisão e obrigará a força de opostos a entrar num canal comum. E assim acaba a suspensão da vida, ela pode continuar fluindo com novas forças e novos objetivos” (JUNG, 1921/2013b, v. VI. p. 493).
O confronto dos arquétipos contra sexuais permite o contato com a característica elementar que está inconsciente e que falta ao sujeito para ele caminhar para a inteireza. O meio mais comum de suprir a falta inalcançada e desconhecida no sujeito é buscar o que o completa no outro, em suas relações. Essa projeção é responsável por formação de grande número de relações. Mas também tende a conflitos e frustrações, pois se espera que o outro seja exatamente o que lhe falta. O processo de individuação inclui confrontar esse “outro em mim”. A busca pela anima é o grande princípio da vida, que também pode ser entendida como alma, instância psíquica aberta a movimentações, transformações, que segue o objetivo de encontrar o self, o si mesmo, de tornar-se realmente quem se é (HILLMAN, 1973/1974 apud SANFORD, 1987).
O reconhecimento da própria sombra, a dissolução de complexos, liquidação de projeções, assimilação de aspectos parciais do psiquismo, a descida ao fundo dos abismos, em suma o confronto entre consciente e inconsciente, produz um alargamento do mundo interior do qual resulta que o centro da nova personalidade, construída durante todo esse longo labor, não mais coincida com o ego. O centro da personalidade estabelece-se agora no self, e a força energética que este irradia englobará todo o sistema psíquico. A consequência será a totalização do ser, sua esferificação (abrundung) (SILVEIRA, 1981, p. 91-92).
Por fim, convém apresentar que, no final da vida, dos 60 aos 86 anos, Jung se interessou profundamente pela Alquimia e a correlacionou com os processos psíquicos e sua teoria. Para Jung, a alquimia, produto da química e da filosofia, é uma metáfora do processo terapêutico, bem como da dinâmica psíquica; visão que já era compartilhada pelos místicos, aqueles atentos às experiências religiosas internas. Estes entendiam “que o verdadeiro laboratório alquímico era o próprio homem. O homem natural era comparável aos metais vis. A meta seria transformá-lo no novo homem, que corresponderia ao ouro, o metal puro por excelência” (SILVEIRA, 1981, p. 126). Os procedimentos alquímicos representam transformação, a realização da totalidade, da integração de todos os opostos. Na percepção junguiana, assim como os processos psíquicos, o sujeito envolto em suas questões, ou acompanhado por uma terapeuta, funciona como um alquimista que trabalha no seu vaso alquímico. O inconsciente corresponde à prima matéria, precisa passar pela opus, um processo que requer inúmeras fases de transformação para se chegar à pedra filosofal – individuação. “‘O grande trabalho’ descrito pelos alquimistas correspondia exatamente ao processo de individuação que ele desvendara na profundeza do inconsciente. Opus alquímico e processo de individuação eram ‘fenômenos gêmeos’” (SILVEIRA, 1981, p. 127).