Sabe-se de registros ou evidências de práticas associadas aos esportes contemporâneos desde os tempos mais remotos. Mas, por que esse fenômeno sobrevive por tantas épocas e por todas as geografias do globo? A que necessidades psíquicas – para além das estudadas pela luz da consciência (saúde/socialização/alto-rendimento, etc.), as práticas esportivas se oferecem? Que válvula é essa que indivíduos, grupos e sociedades encontraram para dar vazão a instintos não ‘domesticados’ à vida societal?
A partir de um olhar analítico (Junguiano) percebe-se nesse fenômeno um mecanismo encontrado pela psique objetiva (inconsciente) em contraposição ao movimento consciente de ‘adultização’ do processo civilizatório na maioria das culturas modernas. Afinal, que espaço há para as paixões numa vida convencional, que prega o controle, a estabilidade e a previsibilidade?
O esporte nos faz acessar emoções, paixões, exageros, fanatismos, superstições, irracionalidades. Não é comum que alguém se interesse por esportes sem ter sido tocado em suas emoções. Sendo assim, definitivamente, o que mais deveria interessar é o que o esporte desperta nas pessoas, e não como se tornar “melhor” nessa ou naquela modalidade. Já imaginaram um “medidor” de emoções? O esporte fala essa outra linguagem. Mas nossos parâmetros não acompanham. Destorcem. Apequenam.
Somos reféns de uma cultura que prima pela razão. Com o avançar dos anos, os esportes foram ganhando instituições para regê-los (federações), visando justamente a elaboração de regras: formas de determinar alguns parâmetros mensuráveis de disputa e desempenho.
Psicologicamente é como se tentássemos, através das regras e resultados, dar conta de um fenômeno múltiplo a partir de um único referencial. O mais simples (quantificável) possível. Nossa necessidade de enquadrar/definir os fenômenos nos deixa restritos a tempos, notas, pontos ou placares diante de acontecimento tão mais vasto e denso. Contudo, não nos iludamos! todo esse aparato é derivado, e não motivador. O que vem antes é de outra natureza, o que (de fato) mobilizou não foi o que hoje determina o vencedor.
O esporte enquanto portador de tantas sensações é como que um portal para nos sentirmos para além daquilo que entendemos por nós mesmos. Parece que acessemos algo de alma, seja como torcedores através dos ídolos, ou como atletas. De repente somos mais que o “Eu” de todos os dias. De repente, somos muitos.
Trata-se de uma ‘ferramenta’ de expressão da alma. Ensina de potencial, limites, superação, glória… e de frustração, tristeza, medo, derrota. A entrega a este reino concede-nos acesso a riquezas que nenhuma medalha teria a capacidade de traduzir. É como um intensivão de humanidade.
Tais práticas concedem entrada a domínios ocultos de nós mesmos, aos quais, raramente temos condições ou permissão de acesso: Sentimentos ao limite, dores inexplicáveis, momentos inesquecíveis. Definitivamente você conhece suas diversas forças e fraquezas. Mexe com seu físico, com seu psicológico, com sua fé. Desafia suas usuais compreensões simplórias de existência e de mundo.
É uma pena que poucos percebam e alcancem esse tanto. A sociedade/cultura, polarizada, ensina que “bom” é ser “perfeito”, como se isso significasse nunca perder, nunca chorar, nunca falhar. Aí tornamos o esporte restritivo: um meio para se chegar “ao auge”. Psicologicamente, uma estratégia do ego que nega diversas outras facetas do existir.
É nesse sentido que os atletas de exímio desempenho pagam um preço muito alto. Se não bastasse tanto sacrifício/disciplina/renuncias, ainda carregam nas costas o peso de todo um coletivo zumbi. Mortos-vivos que não se enxergam e que confundem vitória com vida.
As “pessoas comuns” depositam suas expectativas, seus rancores, suas inabilidades, seus desejos represados. Na prática, atletas são freneticamente enaltecidos quando se apresentam como “Deuses”, mas são severamente enxotados quando se mostram falíveis.
Inevitavelmente, estamos fadados a nos lembrar de que somos “apenas” humanos. Será que um dia iremos descobrir que o tesouro está justamente em compreendermos essa riqueza? Será que um dia entenderemos, sem ingenuidade, o que é ser humano ao sol e à sombra?
A perspectiva inconsciente a respeito do esporte evidencia-o como uma inegável ferramenta para indivíduos e sociedades. Capaz de conter ou explodir desequilíbrios; Alçar ou afundar indivíduos; unir ou separar nações. Esse fenômeno nos auxilia em algo sobre essa eterna aventura de busca e desenvolvimento.
O esporte expõe que o psiquismo é dinâmico e precisa de ancoradouros e motores. Não pode ser visto como um mero entretenimento com fim em si mesmo. Tais modalidades dizem mais. Esporte, para quem tem olhos de ver, é alegria e tristeza, é sol e chuva, é luz e sombra, é sorriso e lágrima, é alívio e dor.
Esporte é alma, e a alma não tem compromisso só com a vida. A Alma é vida + morte.
* Texto escrito por Mauro Fernandes, baseado em palestra aberta realizada na Psiquê, no dia 15 de julho de 2016
* Imagens da galeria de Melhores imagens das Olimpíadas Rio 2016, pelo El País